Crise financeira, desigualdade extrema na distribuição da riqueza, pressão implacável sobre o meio ambiente. O coronavírus é um grande holofote jogando luz sobre questões urgentes que já estavam na pauta. Mas, como nos referirmos corriqueiramente a inquietações que não queremos olhar: “a poeira ficou debaixo do tapete”. A imagem que me vem à mente é a de um quarto escuro. Esse quarto poderia ser chamado de mundo. Dentro dele, muita sujeira e poeira. Mas esse imenso quarto já estava escuro e a poeira não era visível. A COVID-19 é a lanterna forte que joga esse feixe de luz sobre a penumbra do planeta. Tudo sempre esteve ali: falhas na infraestrutura, na saúde pública, na educação, etc. Mas agora tudo fica mais visível. A pergunta que me vêm em seguida é: Então quais possibilidades se abrem ao poder enxergar a falência deste sistema econômico e social que visa o crescimento a qualquer custo? Venho trazer boas perspectivas. Li recentemente uma notícia no The Guardian que me encheu de esperança ao anunciar que Amsterdã, a capital da Holanda, escolheu uma alternativa a esse crescimento desenfreado: a chamada Economia Donut como um modelo viável para a reconstrução do mundo pós-COVID-19.
O termo “economia donut” foi cunhado pela economista britânica Kate Raworth em livro homônimo, “Economia Donut: Sete maneiras de pensar como um economista do século XXI”, lançado em 2017 e traduzido no Brasil pela editora Zahar no ano passado. O conceito veio ganhando força nos debates sobre a reconstrução do mundo pós-COVID-19 e foi alvo de refletores quando as autoridades da capital holandesa, anunciaram oficialmente que implementarão transformações a partir desse novo modelo econômico, de prosperidade em equilíbrio com o planeta. Vencedor do Prêmio Transmission, a obra é uma espécie de bússola para guiar as políticas governamentais, o desenvolvimento global e as estratégias corporativas – além de estabelecer padrões atualizados para o que de fato significa sucesso econômico. “O mundo está passando por uma série de choques e impactos surpreendentes que nos permitem mudar da ideia de crescimento para ‘prosperar’”, diz Kate. “Prosperar significa que nosso bem-estar está em equilíbrio. Nós o conhecemos tão bem no nível do nosso corpo. Este é o momento em que conectaremos a saúde corporal à saúde planetária”, afirmou a autora em reportagem para o The Guardian.
A ideia dela é rever o mito da economia dominante, do “homem econômico racional” (homo economicus) e da obsessão pelo crescimento ilimitado a qualquer custo e propor um sistema no qual as necessidades de todos são satisfeitas sem esgotar os recursos do planeta. Segundo ela, a economia cometeu um grande erro ao se tornar tão matemática. “Foi nos anos 1870, quando queriam fazer da economia uma ciência, imitando a física newtoniana: assim como um pêndulo é levado ao repouso pela gravidade, os mercados são levados ao equilíbrio pelos preços. É uma má analogia. A economia é uma relação entre seres humanos, não cabe numa equação”, diz. A pandemia, nesse sentido, foi mola propulsora para evidenciar as falácias do discurso do ‘homo economicus’ como por exemplo: a redução da vida ao valor econômico ou a negação do público e do comum.
Um dos casos paradoxais e também emblemáticos que revelou essa necessidade de rever o modelo de capitalismo predador e egocêntrico, foi o do primeiro ministro da Inglaterra, Boris Johnson. Ao sair recuperado do hospital público, após ser contagiado pelo coronavírus, agradeceu ao sistema público de saúde que lhe salvou a vida, elogiando a importância desse sistema nestes momentos. A COVID-19 definitivamente revelou a ineficácia da iniciativa privada para enfrentar de forma global e em ampla escala uma problema de saúde pública tão abrangente. E mais do que isso, revelou incoerências contidas no discurso do ‘homo economicus’, ao propor o sacrifício calculado de milhares de vidas humanas para que o produto interno bruto (PIB) não diminua. Definitivamente, não podemos mais colocar a vida humana a serviço da economia.
Justamente como alternativa a esse sistema, que começa a ser implementado agora na Holanda, é o modelo “donut” (o clássico docinho em forma de rosca), que serve de esquema para mostrar a interligação da economia com questões sociais e ecológicas. Kate, que hoje também é professora do Instituto da Mudança Ambiental da Universidade de Oxford, propõe trocar a curva de crescimento infinito do Produto Interno Bruto (PIB) por um círculo, a rosquinha. No anel interno estão o acesso à água potável, alimentação, moradia, saúde, educação, renda, igualdade de gênero, justiça, voz política – o mínimo necessário para levar uma “vida boa”, derivada dos objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU e acordada pelos líderes mundiais de todas as esferas políticas. Qualquer pessoa que não atinja esses padrões mínimos entende-se que está vivendo no buraco da massa. O anel externo da rosquinha, representa o teto ecológico traçado pelos cientistas em relação ao planeta. Ele destaca os limites através dos quais a espécie humana não deve ir para evitar danos ao clima, solos, oceanos, camada de ozônio, água doce e biodiversidade abundante. Para Kate, a economia terá de se tornar regenerativa e circular, tendo um efeito positivo sobre as sociedades e o ambiente. Entre os dois anéis está o ideal: a massa, onde as necessidades de todos e as do planeta estão sendo atendidas. “Uma economia saudável deve ser criada para prosperar, não crescer. Nada na natureza cresce para sempre”, diz a inglesa.
Nesse contexto, perde sentido o modo clássico como o desempenho econômico é medido, seja por meio do PIB ou crescimento da renda nacional. Importante ponderar que no modelo Donut não haveria um único índice substituto, mas sim uma gama de indicadores sociais e ambientais, para além dos econômicos, a exemplo de métricas referentes a estabilidade do clima, saúde dos solos, acesso à água potável, saúde das pessoas, educação, habitação e distribuição de renda. O PIB, tal como surgiu, vem mensurar a atividade econômica, sem contar com, por exemplo, quaisquer desigualdades de rendimento. Como é calculado hoje, o PIB, não tem como mensurar a qualidade, a lucratividade, a amplitude, as melhorias e os avanços dos bens e serviços produzidos. E é isso o que realmente importa para uma economia. Há diversos itens, por exemplo, cuja produção é difícil de medir e acabam ficando de fora. Esse é o caso de bens e serviços que são produzidos, mas que não envolvem uma transação de compra e venda.
A métrica do PIB também não está preparada para enfrentar a economia digital, seus serviços intangíveis e o trabalho desmaterializado, além de ser incapaz de estimar o padrão de vida de uma sociedade. Quando ocorre um furacão ou uma enchente devastadora, os esforços de reconstrução fazem o PIB aumentar, não obstante toda a destruição e todas as perdas trágicas enfrentadas pela população. Outras despesas consideradas “negativas”, como gastos para se proteger contra a criminalidade, com divórcios, com a defesa nacional e para reparar depredações etc. tudo isso, aumenta o valor do PIB, sendo, portanto, considerado geração de riqueza e bem-estar econômico. Quando alguma indústria, para produzir algum bem, consome recursos naturais até seu completo esgotamento, isso também gera um aumento no PIB. Quando uma petroleira deixa vazar petróleo no mar, o dinheiro gasto para limpar o oceano aumenta o PIB. Se algum lixo tóxico é derramado em um rio, o dinheiro gasto para descontaminar o rio estimula o PIB. Mais absurdo ainda: o dinheiro que foi gasto para criar esse lixo tóxico também gera acréscimos ao PIB.
Com o desenho simples da rosquinha de Jane Rayworth podemos sair do absurdo do PIB, em que a destruição ambiental como desmatamento ou vazamentos de petróleo aparecem como positivos, pois aumentam as atividades e logo o PIB e evoluímos para uma conta mais sensata: identificar o que deve ser controlado, como por exemplo a contaminação química; e o que deve ser expandido, como o acesso aos alimentos. Na tradicional rosquinha da padaria, temos uma âncora mental. Ficar no espaço da rosca, onde está a massa e o sabor, é o que temos de resgatar. O vazio do meio são as insuficiências, como acesso à alimentação e o que estamos extrapolando, como as emissões de carbono. Nada muito diferente de como cuidamos da nossa casa, onde temos de complementar as insuficiências e controlar os excessos. Com esse estudo, a economia deixa de ser um mistério para pessoas que não entendem os modelos matemáticos, e passa a ser acessível para a maioria dos mortais. Ao mesmo tempo, temos uma imagem simples e desafios que são coerentes com o documento adotado na Assembleia Geral da ONU em 2015, “Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, um guia para as ações da comunidade internacional nos próximos anos para colocar o mundo em um caminho mais sustentável e resiliente até 2030.
Quem já havia alertado sobre essas questões desde 2003 foi a futurista Hazel Henderson ao propor na época um novo conceito que veio a ficar conhecido como economia do amor, trazendo uma visão sistêmica do mundo ao associar economia e ecologia. “Vivemos no mundo da informação, do conhecimento e da ecologia. Estamos redefinindo o progresso, numa direção sustentável, o que significa incluir no preço dos produtos o custo social e ambiental”, diz. Segundo ela, se deixarmos o mercado financeiro continuar como está, será como determinar a destruição mais acelerada dos recursos naturais. “Este é o velho modelo, em que as empresas estão hipnotizadas pela ideia da lucratividade. Dinheiro não é riqueza. Não há como separar economia de ecologia”, completa.
O mundo mudou. Não podemos mais continuar com velhas premissas e presos a cálculos sem sentido. Já é tempo de deslocar o nosso sistema de mensurar a produção econômica para a mensurar o bem-estar das pessoas. É passada a hora de focar na qualidade de vida e na questão ambiental e social. É urgente contabilizar os impactos ambientais. Se a pandemia acelerou a mudança inevitável do mundo, a economia tradicional também precisa mudar. Só assim entraremos na economia do bom senso. Afinal crescimento não é sinônimo de progresso.
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